A história de Melânia Luz

A história de Melânia Luz

Calendário 8/03/2024 - 15:02

Na noite do dia 4 de setembro de 2023, o Estádio do MorumBIS recebeu o Jogo pela Integridade, evento promovido pela Sport Integrity Global Alliance e realizado simultaneamente em 20 países. Nesta ocasião, foi apresentada ao público a mascote Mel, inspirada na velocista Melânia Luz dos Santos – a primeira atleta negra a disputar os Jogos Olímpicos pelo Brasil.

A Mel juntou-se, assim, ao já consagrado e veterano Santo Paulo, como também ao novato Diamantinho – homenagem à Leônidas da Silva – que apoia o Tricolor desde o final de 2020. Uma tríade de mascotes com muita história para contar.

Melânia Luz no Gimnásia y Esgrima de La Plata para o Sul-Americano de Atletismo de Buenos Aires em 18 de abril de 1946, entre Lourdes de Abreu e Maria Alves Garrido

QUEM FOI MELÂNIA LUZ

Melânia Luz dos Santos, um dos principais nomes de toda a história do atletismo são-paulino e brasileiro, nasceu na cidade de São Paulo no dia 17 de maio de 1928, no bairro do Bom Retiro, próximo ao centro da capital paulista. Contudo, seu nascimento foi registrado em cartório apenas no dia 1º de junho. Para ela, quanto mais, melhor, pois comemorava o aniversário nas duas datas – E o São Paulo, nas redes sociais, até hoje faz o mesmo.

Viveu a infância noutra vizinhança, próxima, no Canindé, local onde, nos anos 1940, o Tricolor se sediava. O vínculo com o São Paulo foi, então, natural, desde os primeiros anos de vida, ainda mais pelo fato de os pais, um policial militar e uma dona de casa, já serem são-paulinos convictos de longa data, passando para a pequena Melânia a mesma paixão pelas três cores.

Na sede do São Paulo no Canindé, Melânia competiu a maior parte da carreira.

Apta ao atletismo, logo tomou parte na mais incrível equipe deste esporte já existente em toda a história do Brasil – seis vezes vencedora do Troféu Brasil, 14 vezes consecutivas campeã paulista (com 20 títulos ao todo) –, comandada pelo consagrado técnico alemão Dietrich Gerner, e que tinha como principal astro o bicampeão olímpico Adhemar Ferreira da Silva.

Melânia na pista de atletismo do São Paulo no Canindé no dia 18 de fevereiro de 1948

Passou a disputar, então provas de velocidade e, posteriormente, de salto em altura. Aos 17 anos, no dia 11 de agosto de 1945, obteve a primeira medalha de ouro vencendo os 50 metros rasos do Campeonato Paulista Infantil. No ano seguinte, venceu os 200 metros rasos do Paulista Juvenil.

Galgando as categorias, enquanto concluía o estudo colegial em um colégio particular com bolsa de estudos concedida pelo Tricolor, obteve nova medalha de ouro estadual na competição de novos, nos mesmos 200 metros rasos, em 1947. Passou, logo depois, a figurar oficialmente na categoria adulta.

No final dos anos 1940, esteve no auge da condição física e das conquistas esportivas, ainda que tivesse que conciliar os árduos treinamentos de Gerner, aos sábados e domingos, com a rotina de trabalho semanal. Cabe ressaltar, que tanto Melânia como mesmo Adhemar Ferreira da Silva foram atletas amadores por toda a vida deles, nunca recebendo um salário para desempenhar o esporte que tanto amavam. O clube e as federações arcavam com despesas de transporte, material e ajudas de custo, somente.

Pelo Tricolor, Melânia foi campeã dos 100 metros rasos do Troféu Brasil de Atletismo em 1947 (duas vezes) e 1954; campeã dos 200 metros rasos do Troféu Brasil em 1947, 1950 e 1954; campeã paulista dos 200 metros rasos em 1947 e 1950, campeã citadina dos 50 metros rasos em 1947 e vencedora da eliminatória da Seleção Paulista de 400 metros rasos em 1953.

Pela Seleção Paulista foi campeã brasileira adulta dos 200 metros rasos e do revezamento 4×100 metros, ainda como atleta juvenil. Repetiu a conquista do revezamento em 1949, 1951 e 1953.

Já pela Seleção Brasileira obteve as maiores glórias da carreira. Venceu o Pré-Sul-Americano dos 200 metros em 1947 e dos 100 metros em 1954. Ganhou a prata dos 200 metros rasos no Campeonato Sul-Americano de 1947 e 1949 e o bronze nos 100 metros rasos na competição continental de 1947. Conquistou também a medalha de ouro no revezamento 4 x 100 metros no Sul-Americano de 1949, 1953 (extra) e 1958.

Melânia entre Luci, Dani e Benedita, do Palmeiras, Marlena, do Tietê e Georgina, do Pinheiros

E claro, a principal de todas as marcas: o recorde sul-americano dos 4 x 100 obtido nos Jogos Olímpicos de 1948, onde quebrou a maior das barreiras.

OS JOGOS OLÍMPICOS DE 1948

Os Jogos Olímpicos de Verão de 1948, os jogos da XIV Olimpíada, marcaram a estreia do São Paulo Futebol Clube no mais importante congraçamento esportivo do planeta. Realizado em Londres, após a devastação da II Guerra Mundial, o evento ocorreu entre 29 de julho e 14 de agosto daquele ano.

A delegação brasileira, composta por 77 atletas (70 homens e sete mulheres) em 10 esportes, pela primeira vez viajou de avião para esta competição (antes, enfrentavam duras e longas viagens de navio), e conquistou somente uma medalha, de bronze, com o basquete masculino.

A comitiva são-paulina, parte deste grupo, foi composta por quatro atletas: Adhemar Ferreira da Silva e Melânia Luz, no atletismo (além do técnico Gerner), Ralph Zumbano e Vicente dos Santos, no boxe.

Telegrama enviado por Melânia para Adhemar Ferreira da Silva parabenizando-o pela medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 1952

O Tricolor não obteve nenhuma medalha, mas a jornada de Melânia Luz na ilha britânica reverbera até os dias de hoje no meio esportivo e na sociedade brasileira pela barreira rompida intrepidamente ao se tornar a primeira mulher negra a disputar os Jogos Olímpicos pelo Brasil.

Melânia em Wembley assistindo as competições dos Jogos Oímpicos

Às 15h30, horário local, do dia 5 de agosto de 1948, essa triste barreira começou a cair. Na prova dos 200 metros rasos, Melânia competiu contra uma neerlandesa, uma francesa, uma estadunidense e uma bermudense. Após 26,6 segundos de corrida, Melânia terminou em quarto lugar na sua classificatória e não obteve vaga para as semifinais da competição, que terminou com a medalha de ouro da neerlandesa Blankers-Koen, que vencera Melânia na disputa inicial.

Dois dias depois, no dia 7 d e agosto, Melânia entrou novamente na pista, daquela vez para a prova de revezamento 4 x 100 metros rasos. Junto a Benedicta Souza Oliveira, Lucila Batista Pini e Gertrudes da Morg, executaram a prova em 49 segundos, um segundo e um décimo acima da primeira equipe colocada, a do Canadá, terminando a qualificatória no quarto lugar.

Representando o Brasil no Campeonato Sul-Americano de Atletismo

Nada mal como resultados da primeira equipe feminina de atletismo da história do Brasil nas Olimpíadas. Na verdade, era excepcional: o tempo obtido na prova dos 4 x 100 metros rasos marcou a quebra do recorde sul-americano da prova.

O mais importante, porém, superava em muito as classificações finais: “Eu sou a primeira negra que foi à Inglaterra. Conversei com a Rainha”, dizia à filha Maria Emília, como contam Dayana Natale, Denise Thomaz Bastos e Helena Rebello em artigo excepcional sobre a vida da atleta no portal Globoesporte.com em 2020.

Foi a primeira e última participação de Melânia nos Jogos Olímpicos, mas a são-paulina abrira uma porta que jamais voltaria a ser fechada. Em 1952, nos Jogos de Helsinque, e em 1960, em Roma, uma colega tricolor de Melânia, Wanda dos Santos, representou novamente as brasileiras afrodescendentes e o São Paulo em mais uma edição da maior competição esportiva da Terra.

Clara, do Pinheiros, e Wanda dos Santos, grande amiga, ao lado de Melânia

FORA DAS PISTAS

Depois do Tricolor, Melânia ainda defendeu as cores do Tietê e do Floresta, atual Espéria, antes de se aposentar das competições competitivas. Longe do circuito, casou-se com Waldemir Osório dos Santos, ex-atleta do Vasco, e dedicou-se por 30 anos ao serviço de técnica de laboratório, trabalhando pelas manhãs no Instituto de Saúde e às tardes na Santa Casa de Misericórdia e, depois, no Hospital Padre Bento – como contam Natale, Bastos e Rebello (2020).

Após o falecimento de Waldemir, com o qual conviveu por 29 anos, regressou às pistas, para competir em classes veteranas e másteres, para atletas de mais de 60 ou 70 anos de idade. Inclusive representando o Brasil no Mundial de Durban, em 1997, e estabelecendo inúmeros recordes destas categorias. Feitos que certamente ilustram com perfeição todo o vigor que possuía, como também todo o amor que nutria pelo esporte.

Melânia Luz dos Santos faleceu no dia 21 de junho de 2016, aos 88 anos de idade, em São Paulo.

Já veterana, em gravação para a TV Globo no MorumBIS

Poucas pessoas souberam do episódio. A morte da pioneira foi lamentada, de início, e por alguns anos a seguir, apenas pelo seio familiar. Mesmo o Arquivo Histórico do Tricolor não tomou conhecimento do passamento da campeã, ainda que, alguns anos antes, a tivesse recebido, com familiares, no Estádio do MorumBIS, em ocasião da doação para a posteridade de inúmeros registros da trajetória esportiva de Melânia.

Registros estes, hoje aqui publicados.

Em junho de 2022, entrou para o Hall da Fama do Comitê Olímpico Brasileiro, integrando uma seleta lista com nomes como Paula e Hortência (basquete), Sandra Pires e Jaqueline Silva (vôlei de praia), Aida dos Santos e Adhemar Ferreira da Silva (atletismo), Fofão e José Roberto Guimarães (vôlei), Aurélio Miguel (judô) e tantas outras destacadas figuras do esporte nacional.

Em suma, Melânia Luz é, para todo o sempre, uma das maiores personalidades esportivas da história do São Paulo e do Brasil.

Michael Serra / Arquivo Histórico do São Paulo FC

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